quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

~ Rastros

Ela saiu, trancou a porta atrás de si, passou os dois cadeados no portão que nunca mais voltaria a destrancar. Partiu assim, de repente, sem maiores explicações ou motivos, simplesmente aconteceu, como uma insuficiência respiratória ou parada cardíaca. Uma partida tão natural que nada constava nos documentos expedidos após a violação de seu corpo, aquele recipiente que havia guardado seu espírito por tanto tempo.

Mas dizer que ela havia desaparecido era um erro, aquela casa estava impregnada de seus rastros, a cada metro havia algo que lhe trazia à mente. A roupa suja jogada sobre o mármore frio do banheiro, a meia dúzia de copos meio cheios espalhados por cima dos móveis, a sala de televisão amontoada de jogos e filmes não guardados, as plantas que cresciam em cantos estratégicos da casa (mas ninguém sabia) e casa milímetro de seu quarto, tão impregnado por aquele cheiro doce e amadeirado, uma contradição por si só assim como ela mesma se enxergava na maioria do tempo. A pilha de livros que foram devorados duas ou três vezes por ela metodicamente organizados na estante, a cama bagunçada com um edredom meio amarrotado, as roupas jogadas em cima do sofá e os vidros de esmalte espalhados pelos cantos.

Ela retornou, passou pela grade trancada deixando inviolados os cadeados que a trancavam e finalmente pode reparar o quão parecida consigo era aquela casa: espaçosa e vazia, cheia de uma vida pouco cuidada crescendo ao seu redor. Passou pelos cômodos, detendo-se em cada um deles por alguns instantes e fechando os olhos como se pudesse reviver momentos que não voltariam. Quando voltou ao seu quarto, encolheu-se na cama mas não sentiu o calor confortável do cobertor e foi quando olhou pro lado, para o porta retrato ainda vazio que ela percebeu: havia ido cedo demais.

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