quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

~ Outonos

Convide-me está noite
Porque eu sei que pela manhã
Você terá ido embora

Esse era o terceiro mês que eles se encontravam, sempre às oito da noite no parque da cidade. Ele a seguiu por dias, atraído por seu cheio e pela sua pele pálida que deixava tão visíveis suas veias e ela, sempre tão cuidadosa, andava pelos locais mais movimentados e iluminados; foi assim que ele a conheceu rapidamente de uma forma tão íntima, sabia seus gostos e vontades, como soava o barulho de sua respiração ao dormir e a melhor posição pra estudar. Com um arriscado plano se apresentou a ela, que não demorou a se encantar por sua maturidade e sapiência, ainda que tivesse um rosto tão belo e jovem. Tornaram-se amantes antes mesmo que a lua completasse uma fase, era um sentimento tão verdadeiro que ele não queria perdê-la, mas também não poderia enganá-la. Assim, contou-lhe sobre sua natureza noturna, a fez entender porque nunca a vira enquanto o sol estava brilhando no céu.

E desta vez
Minhas folhas não cairão
Não me sentirei tão vazia
Como eu me sentia
Em outros outonos

Aquela havia sido a última noite a preceder todo um dia de espera, com um beijo, ele a manteve a seu lado por toda a eternidade, nas horas de luz ou de trevas, estariam lado a lado, como ficam os amantes. Seu corpo estava mudando, seus sentidos tornavam-se mais e mais aguçados, sua capacidade de percepção era gigantesca. Havia uma completude no modo como se olhavam e se orientavam em torno um do outro, ambos sentiam-se plenos novamente; ele, após séculos de vida tinha um bom motivo pelo qual ter morrido e ela encontrou uma razão para morrer.

Sua ausência sempre antecedeu
Meus invernos
Mas as minhas frágeis folhas
Desta vez não irão amarelar

Os dias negros dele ficaram para trás, foram anos, décadas com o desejo de por fim a sua medíocre existência, assim como o coração dela não estava a ponto de se machucar novamente, como sempre acontecia a cada paixão que tinha. Estavam firmes e inteiros daquela forma: juntos.

Meu coração está maduro
A ponto de cair no chão
Entretanto ele se manterá firme

O amor que nutriam um pelo outro foi crescendo e se solidificando com o passar dos dias, a eternidade parecia pouco para tanto que tinham a descobrir juntos. Não que ele pensasse sobre o futuro, mas se o fizesse se veria junto a ela, mais enraizados um dentro do outro do que uma árvore que se prendia à terra.

Minhas folhas só cairão
Quando eu estiver pronta
E eu não me sentirei tão vazia
Como eu me sentia
Em outros outonos

Já ela, gostava de imaginar como seria com o passar dos anos. Era mais realista e monos utópica, talvez ainda muito atrelada a sua antiga humanidade sempre pensava que não seriam criaturas eternas e que um dia ela teria de deixar o mundo, mas tinha a certeza de que quando o fizesse, o faria ao lado dele e continuariam tão completos quanto estavam hoje.



Música: Outonos - Lebre de Março
Letra: Rafaela Cabral / Arranjo e Melodia: Anderson Aredes
Ouçam em: PureVolume

Texto: Lena Araújo

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

~ Rastros

Ela saiu, trancou a porta atrás de si, passou os dois cadeados no portão que nunca mais voltaria a destrancar. Partiu assim, de repente, sem maiores explicações ou motivos, simplesmente aconteceu, como uma insuficiência respiratória ou parada cardíaca. Uma partida tão natural que nada constava nos documentos expedidos após a violação de seu corpo, aquele recipiente que havia guardado seu espírito por tanto tempo.

Mas dizer que ela havia desaparecido era um erro, aquela casa estava impregnada de seus rastros, a cada metro havia algo que lhe trazia à mente. A roupa suja jogada sobre o mármore frio do banheiro, a meia dúzia de copos meio cheios espalhados por cima dos móveis, a sala de televisão amontoada de jogos e filmes não guardados, as plantas que cresciam em cantos estratégicos da casa (mas ninguém sabia) e casa milímetro de seu quarto, tão impregnado por aquele cheiro doce e amadeirado, uma contradição por si só assim como ela mesma se enxergava na maioria do tempo. A pilha de livros que foram devorados duas ou três vezes por ela metodicamente organizados na estante, a cama bagunçada com um edredom meio amarrotado, as roupas jogadas em cima do sofá e os vidros de esmalte espalhados pelos cantos.

Ela retornou, passou pela grade trancada deixando inviolados os cadeados que a trancavam e finalmente pode reparar o quão parecida consigo era aquela casa: espaçosa e vazia, cheia de uma vida pouco cuidada crescendo ao seu redor. Passou pelos cômodos, detendo-se em cada um deles por alguns instantes e fechando os olhos como se pudesse reviver momentos que não voltariam. Quando voltou ao seu quarto, encolheu-se na cama mas não sentiu o calor confortável do cobertor e foi quando olhou pro lado, para o porta retrato ainda vazio que ela percebeu: havia ido cedo demais.

sábado, 16 de janeiro de 2010

~ Interrogação Cartesiana

Ela nunca soube exatamente o que queria. Ele, sempre soube o que não queria. E assim, a vida de ambos se cruzavam de modo tão singular que nada na geometria poderia explicar. Enquanto ele a tangia em todos os pontos possíveis, não havia um só ponto na reta dele que a fosse comum. E assim, eles seguiram adiante daquela forma inexplicável, onde só uma das partes estava tangenciando a outra sem que a outra a fosse tocasse de volta.

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

~ Eu Lírico

Não cabe aqui usar a terceira pessoa, como é de costume, porque isso não trata-se de uma crônica, uma situação, um sonho ou qualquer outra coisa que eu tenha sido registrada aqui. Trata-se, dessa vez, de sentimentos. Não que as postagens até aqui não estivessem repletas deles, sim, elas estavam e irão continuar estando; eu posso ter até emprestado alguns sentimentos próprios a essas linhas que ficaram para trás, mas agora, cada palavra, cada frase formada está transbordando desses malditos sentimentos que eu não consigo selar.

Já tentei escrever outras coisas, ler, jogar, dormir e conversar, mas nada que eu possa fazer parece preencher esse vazio porque a única coisa que seria capaz de fazê-lo nesse instante eu sei que é impossível. Hoje, mais do que nos últimos dias, me sinto como uma criança que precisa de colo, tanto que passei a tarde na cama da mainha lendo enquanto ela via filme do lado, mas ainda sim não foi o suficiente pra preencher esse buraco.

O dia parece mais frio – o que de fato está, mas desde quando essa sensação térmica foi do meu desagrado? Desde que tudo ficou mais vazio, mais quieto, mais sério, mais distante...

Me sinto impotente diante de certas coisas ao mesmo tempo em que eu me sinto demais para elas, é como se eu pudesse controlar toda a água do mundo e tentasse apagar o incêndio de uma floresta que quer pegar fogo. Confuso, não? Eu também penso assim, penso demais até. Não paro de pensar um maldito segundo e tudo que eu mais desejo é que eu possa trancar novamente todas as malditas janelas da minha mente, selar as portas e cobrir as entradas de ar.

Eu queria, só por hoje, ser uma personagem de algum desenho capaz de se teletransportar para outro canto, e que estivesse em seu dia de folga, sem se importar em salvar vidas ou até mesmo salvar o mundo. Odeio me sentir apegada, dependente, fraca, mas só por hoje, só por agora, eu preciso me dar a esse direito. Só por hoje eu queria um abraço apertado e um cafuné. Só por hoje eu queria uma segunda casa para onde eu pudesse fugir e comer chocolate. Só por hoje eu me permito ser meu próprio eu lírico.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

~ A Novidade

Quando resolveu fugir de seu reino, dos cuidados do atencioso pai, nunca passou por sua mente inocente que fosse parar naquela situação tão peculiar. Ao longe havia avistado os humanos, tão belos com suas silhuetas alongadas e levando a si mesmas para aqui ou ali, independente te ter uma corrente marinha à seu favor.

A sereia invejava os humanos, mal sabendo da selvageria que eles eram capazes; mas se o tempo passar do pretérito para o presente, a oração tornar-se-ia falsa. Agora, com o medo estampado em sua bela face, ela enxergou o lado vil dos humanos, o lado que nunca teria de ver se tivesse permanecido em seu habitat, entre os seus.

Não demorou muito até que a mídia tivesse conhecimento da situação e montasse seus aparatos eletrônicos naquela praia, mostrando a todo o país aquela peculiar novidade, que era alvo de flashes e da cobiça de pescadores, que perguntavam a si mesmos o quanto lucrariam com a venda da carne descamada da cauda daquela bela criatura.

Enquanto isso, poetas, músicos, pintores e escultores tentavam captar da melhor forma a essência daquele ser, que não fora questionado uma vez sequer sobre seu bem estar, talvez por isso, ela desfalecera aos poucos, impossibilitada de caminhar e sem água para se locomover, cada instante que passava a deixava mais e mais desidratada. Por mais que desejasse ser livre e independente das correntes marinhas, não o seria naquele ambiente que lhe era inóspito.


Texto baseado na música A Novidade d'Os Paralamas do Sucesso.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

~ Querida Desconhecida

Existem alguns momentos na vida em que a realidade é tão dura que sonhar pode ser a única escapatória da loucura. Esse era um daqueles dias na vida da jovem, ela não era a mais bonita da turma nem a mais inteligente, mas tinha algo que a fazia ser querida por quase todos os da sua classe e ela se sentia feliz por isso. Sempre prestativa, fazia questão de ouvir os amigos nas horas de dificuldades e ajudá-los da forma que podia, e assim ela se tornou uma grande conhecedora daqueles que estavam lhe rodeando e até que ela era feliz assim, até aquele fatídico dia.

Ela sentia-se triste e consumida, nada que o passar dos dias pudesse resolver, mas até lá ela ficava imaginando situações que talvez nunca fosse viver. Distraída em seus próprios sonhos, foi atravessar a rua para pegar o caminho para casa, mas naquele dia, nunca chegou a pisar na outra calçada. Não fora culpa daquele prudente motorista, ela entrou com tudo na frente do carro, houve quem falasse em suicídio, mas ela nunca faria aquilo consigo, amava demais a vida.

Em poucos segundo havia dezenas de rostos conhecidos ou não em torno dela, e ela, que nunca fora o centro de todas as atenções, estava inconsciente de que agora o era. Não tardou para que os paramédicos chegassem, o sangue fora precariamente contido, mas não estancado, parte do asfalto estava vermelho e ela parecia mais pálida a cada instante. Quando os homens de branco a imobilizaram, viraram para os mais próximos, os que pareciam mais aflitos, aqueles que pareciam ser seus amigos.

- Sabem o tipo sanguíneo da garota? Ou se tem alguma alergia? Perguntou aquele que parecia ser o chefe dos paramédicos.

O grupo que observava encarou uns aos outros esperando por uma resposta que nunca veio. Mesmo depois de tanto tempo de convívio, deram-se conta que nada sabiam sobre ela.